No artigo ?Neurociências e Alfabetização?, eu mostrei que vários estudos neurocientíficos chegaram a conclusões convergentes e consistentes sobre os componentes dos métodos de ensino que são eficazes para a alfabetização: as consciências fonológica, silábica e fonêmica; o princípio alfabético, as correspondências entre grafemas e fonemas; as fusões fonêmicas e silábicas; as segmentações silábicas e fonêmicas; [e] a compreensão leitora. No artigo ?Neurociências e Educação?, eu afirmei que a Psicologia Cognitiva é um potencial intermediário na ligação entre as áreas da Neurociência e da Educação. Neste artigo eu vou apresentar uma visão geral do que a Psicologia Cognitiva tem a dizer sobre a alfabetização e quais são os princípios orientadores para uma alfabetização eficaz.
A ciência cognitiva da leitura trata dos processos linguísticos, cognitivos e cerebrais envolvidos na leitura e na escrita. Ela mostra que sua aprendizagem não é natural nem espontânea, como ocorre com a linguagem oral. Ao contrário, a leitura e a escrita precisam ser ensinadas de modo explícito e sistemático. As pesquisas têm demonstrado que ?aprender a ler e a escrever faz criar no cérebro um caminho que liga as áreas de processamento fonológico com as de processamento visual, de modo que uma palavra, quando é vista, ativa no cérebro as mesmas áreas que uma palavra quando é ouvida? (BRASIL, 2019: p.26). De fato, a correlação entre a consciência fonológica e a aprendizagem da leitura e escrita está bem documentada (KONRAD e LORANDI, 2019), assim como a reciprocidade entre elas ? ?a consciência fonológica contribui para o sucesso da aprendizagem da leitura e escrita, enquanto que a aprendizagem de um sistema de escrita alfabético contribui para o desenvolvimento mais aprimorado da consciência fonológica? (RAMOS e SCHERER, 2013: p.325).
O processo cognitivo da leitura pode ser descrito pelo modelo L=DxC, proposto por por Gough e Tumner em 1986, em que ?ler (L) é o produto de dois componentes complementares e indissociáveis, a decodificação (D) e a compreensão oral (C)? (MARQUEZ e SILVANO, 2019: p.155). Assim, a leitura é um processo complexo que depende do desenvolvimento de várias habilidades, como ilustrado pelo modelo de cordas, elaborado por Hollis Scarborough (Figura 1). Algumas dessas habilidades são desenvolvidas naturalmente, mas outras, como a consciência fonológica e a decodificação, necessárias para o reconhecimento automático de palavras, necessitam de instrução explícita e sistemática. ?Essas habilidades vão-se unindo gradualmente como fios numa corda, e assim a leitura se torna cada vez mais proficiente. Com a automatização das habilidades de reconhecimento de palavras é liberado espaço na memória para os processos de compreensão.? (BRASIL, 2019: p.28)
Figura 1 ? Modelo de cordas de Hollis Scarborough.
Dessa forma, para que seja possível compreender um texto escrito, é necessário que, além das habilidades de compreensão da linguagem, sejam desenvolvidas as habilidades de reconhecimento das palavras, o processo de decodificação. Para que isso seja feito de forma adequada, os métodos de alfabetização devem se basear nos seguintes princípios (TELES, 2004):
1. Aprendizagem Multissensorial ? a leitura e a escrita são atividades multissensoriais. As crianças têm que olhar para as letras impressas, dizer, ou subvocalizar, os sons, fazer os movimentos necessários à escrita e usar os conhecimentos linguísticos para ter acesso ao sentido das palavras. São utilizadas simultaneamente diferentes vias de acesso ao cérebro, os neurônios estabelecem interligações entre si, facilitando a aprendizagem e a memorização.
2. Ensino Estruturado e Cumulativo ? a organização dos conteúdos a aprender segue a sequência do desenvolvimento linguístico e fonológico, inicia-se com os elementos mais fáceis e básicos e progride gradualmente para os mais difíceis. Os conceitos ensinados devem ser revistos sistematicamente para manter e reforçar sua memorização.
3. Ensino Direto, Explícito ? os diferentes conceitos devem ser ensinados direta, explícita e conscientemente, nunca por dedução.
4. Ensino Diagnóstico ? antes de cada etapa da alfabetização, deve ser realizada uma avaliação diagnóstica das competências adquiridas e a adquirir.
5. Ensino Sintético e Analítico ? devem ser realizados exercícios de ensino explícitos da fusão fonêmica, da fusão silábica, da segmentação silábica e da segmentação fonêmica.
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6. Automatização ? as competências aprendidas devem ser treinadas até sua automatização, sua realização sem atenção consciente e com o mínimo de esforço e tempo. A automatização permite que a atenção seja totalmente direcionada à compreensão do texto.
Esses princípios são válidos para a alfabetização em geral, independentemente do público-alvo. Eles valem tanto para crianças na fase inicial de alfabetização como para a alfabetização de jovens e adultos. Além disso, eles são especialmente úteis para crianças com dislexia. É importante ressaltar que tanto as habilidades relacionadas ao reconhecimento das palavras como os princípios para o ensino da leitura e da escrita, apresentados acima, são corroborados por inúmeras pesquisas em Psicologia Cognitiva e nas Neurociências. Assim, a ideia de que o ensino explícito da decodificação é prejudicial à compreensão dos textos e que, por isso, ele deve ser preterido em favor de métodos globais, baseados em ?textos autênticos?, não tem nenhum embasamento científico. Em 1985, três décadas e meia atrás, um estudo de Charles A. Perfetti já mostrava ?que quando a decodificação é lenta os recursos cognitivos dedicam-se aos processos de nível inferior e quando está automatizada os recursos são disponibilizados para o processamento da compreensão? (MARQUEZ e SILVANO, 2019: p.158).
Dessa forma, é imprescindível divulgar os conhecimentos científicos sobre o processo de alfabetização para os professores alfabetizadores, mostrando a eles o que, de fato, funciona. O Brasil está atrasado várias décadas em relação aos métodos de alfabetização utilizados na grande maioria das escolas do país. Isso se reflete, infelizmente, na capacidade de compreensão de grande parte de nossa população, o que é facilmente comprovado nestes tempos de redes sociais, em que, muitas vezes, o que está escrito não é levado em conta, mas sim a ?compreensão? distorcida de quem lê, resultando em respostas que não tem relação direta com o que está escrito. Nesse sentido, é um grande alento o esforço da Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação, capitaneada pelo professor Carlos Nadalin, para a implementação da Política Nacional de Alfabetização e o treinamento de professores alfabetizadores em todo o país.
Assista ao vídeo sobre esse tema em meu canal do YouTube: https://youtu.be/mYVHs1g8qu4.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA: Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC, SEALF, 2019. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/images/banners/caderno_pna.pdf>. Acesso em 16 abr. 2020.
KONRAD, Jordana Taís; LORANDI, Aline. Relação entre consciência fonológica e compreensão leitora em crianças: revisão sistemática de pesquisas brasileiras. Letras de Hoje, v. 54, n. 2, p. 274-283, abr.-jun. 2019. Disponível em <https://doi.org/10.15448/1984-7726.2019.2.32525>. Acesso em 7 jan. 2021.
MARQUEZ, Nakita Ani Guckert; SILVANO, Juliane Dutra da Rosa. A leitura: dos microprocessos aos macroprocessos, uma relação complementar. Letras de Hoje, v. 54, n. 2, p. 154-161, abr.-jun. 2019. Disponível em <https://doi.org/10.15448/1984-7726.2019.2.32364>. Acesso em 7 jan. 2021.
RAMOS, Norma Suely Campos; SCHERER, Lilian Cristine. Um estudo sobre aprendizagem da língua escrita no ciclo da infância, consciência fonológica e formação linguística do alfabetizado. Letras de Hoje, v. 48, n. 3, p. 324-333, jul./set. 2013. Disponível em <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/12691>. Acesso em 7 jan. 2021.
TELES, Paula. Dislexia: como identificar? Como intervir?. Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, [S.l.], v. 20, n. 6, p. 713-30, nov. 2004. Disponível em: <http://www.rpmgf.pt/ojs/index.php/rpmgf/article/view/10097/9834>. Acesso em 19 mar. 2012.